FórumDCNTs convidou especialistas para debater os desafios do contexto brasileiro para a prevenção e identificação precoce da doença
A doença renal crônica (DRC) atinge 10% da população mundial. São 850 milhões de pessoas que vivem com lesões renais e perda progressiva e irreversível da capacidade dos rins de filtrar os resíduos metabólicos do sangue. Com prevalência crescente nas últimas décadas, a DRC registrou aumento de 42% em sua taxa de mortalidade em 17 anos e tornou-se um dos motivos predominantes de óbitos em todo o mundo. O Institute for Health Metrics and Evaluation chama a doença de “assassino global escondido em plena vista”, o qual saltou, na lista das maiores causas de mortes mundiais, da 17ª posição, em 1990, para o 12º lugar, em 2017. O aumento da prevalência da DRC está associado ao envelhecimento populacional e a condições crônicas não transmissíveis (CCNTs), das quais se destacam o diabetes mellitus e a hipertensão arterial. Também são fatores de risco a obesidade, hipercolesterolemia e tabagismo.
A DRC evolui de maneira assintomática até que a insuficiência renal se torne severa e, no estágio posterior, crônica, quando as únicas opções terapêuticas são hemodiálise, diálise peritoneal ou transplante renal. “Apesar de salvarem vidas, as terapias de substituição de função pioram a qualidade de vida das pessoas com a doença e de seus familiares. Além disso, impactam a sustentabilidade dos sistemas de saúde em decorrência de seus altos custos”, explica o Dr. Roberto Pecoits-Filho, conselheiro e membro do comitê executivo da Sociedade Internacional de Nefrologia (ISN).
Segundo a Dra. Patrícia Abreu, preceptora na Residência Médica em Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e tesoureira da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), são maiores as chances de a pessoa com DRC avançada morrer em decorrência de um evento cardiovascular do que ser tratada com diálise ou receber um novo rim. “Por isso, a importância da prevenção e do diagnóstico precoce. Quanto mais cedo a doença for detectada, menor é o risco de morte, pois a velocidade de sua progressão é reduzida com tratamento farmacológico e mudanças de hábitos de vida”, alerta a nefrologista.
Abreu e Pecoits-Filho estão entre os especialistas que participaram do evento “Doença Renal Crônica: como desativar essa bomba-relógio?”, promovido pelo Fórum Intersetorial para Combate às Doenças Crônicas não Transmissíveis no Brasil (FórumDCNTs), no dia 8 de dezembro. Durante o encontro, foram discutidos protocolos, diretrizes e desafios no contexto brasileiro para prevenir, rastrear, diagnosticar e tratar oportunamente essa frequente e perigosa doença, de forma a diminuir a necessidade de diálises e transplantes e evitar mortes prematuras.
O cenário brasileiro
A obtenção de um panorama acurado da prevalência da DRC no Brasil depende de maior investimento em estudos com aferição de dados laboratoriais, uma vez que há um subdiagnóstico significativo da doença no país. Isso é perceptível quando sua prevalência é calculada apenas com base no diagnóstico autorreferido encontrado nos inquéritos da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 - nesse caso, ela é de 1,4% da população brasileira. Quando são considerados os dados laboratoriais da PNS, o resultado é quatro vezes maior, de 6,7%. Nessa pesquisa, estão disponíveis somente informações de dosagem de creatinina no sangue. “A análise de dados constantes em outro estudo, que inclui também a albuminúria, ou seja, a perda de albumina pela urina, eleva a prevalência da DRC para 8,9% da população do país”, informou a Dra. Alexandra Dias, docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG). A enfermeira destacou o relevante crescimento da obesidade no Brasil, com prevalência de 24,3% em 2023”, e o papel dessa CCNT na doença renal crônica. “Pessoas em obesidade possuem risco duas vezes maior de desenvolver doença renal crônica em relação às não obesas”, comparou.
Os especialistas presentes no evento do FórumDCNTs sublinharam que os exames para o diagnóstico da DRC - dosagem de creatinina no sangue e de perda de albumina na urina - são simples, baratos e estão previstos tanto nas diretrizes para tratamento da hipertensão e diabetes quanto na linha de cuidado da pessoa com doença renal crônica. “Sabemos que, muitas vezes, os protocolos de solicitação rotineira desses exames não são cumpridos. Para mudar esse quadro e garantir que o Brasil atinja o objetivo de desenvolvimento sustentável 3.4 no que diz respeito à doença renal crônica, é necessário investir na boa governança do Sistema Único de Saúde, com reorganização dos processos de trabalho para que os modelos estabelecidos saiam do papel”, avaliou a Dra. Alexandra Dias. “Um problema que vejo em todo o mundo, e também no Brasil, é que o médico generalista, no pouco tempo que tem para realizar a consulta, precisa escolher o que vai abordar dentro de uma gama muito ampla de possibilidades. É essencial a organização dessa lista com a priorização de programas que exercem grande impacto na saúde pública, como aqueles relacionados à DRC”, propôs Pecoits-Filho.
Alexandra Dias frisou a relevância da educação permanente multiprofissional na atenção primária para o diagnóstico precoce da DRC. “Devemos valorizar o agente comunitário de saúde que, se estiver informado, pode conscientizar as pessoas com diabetes e hipertensão sobre a importância dos exames de sangue e urina, para que cobrem sua realização durante o atendimento nas unidades de saúde”, recomendou. Para a Dra. Frida Plavnik, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH), os médicos devem ser orientados desde o curso de graduação sobre a importância da solicitação dos exames diagnósticos de DRC. “Assim, ficará sedimentado em seus conhecimentos de que a função do médico é prevenir complicações, e não tratar o indivíduo com diálise porque não há mais o que fazer”.
O papel da equipe multiprofissional de saúde no diagnóstico da DRC e promoção de autocuidados
Os especialistas acreditam que a ampliação da detecção precoce da DRC passa, essencialmente, pelo envolvimento da população. “Sem o engajamento das pessoas, especialmente aquelas que fazem parte dos grupos de risco, é impossível levar, em curto prazo, o diagnóstico para todos que têm o problema. É preciso informar a sociedade para que ela faça parte do ecossistema responsável pela identificação da doença”, argumentou Pecoits-Filho. “Temos que implantar ações que fixem nas pessoas o conhecimento de que, para a saúde do rim, é primordial fazer dosagem de creatinina, da mesma forma que elas já têm consolidado o entendimento de que, para prevenção do diabetes, é verificada a glicemia, e para prevenir a dislipidemia, são investigados os níveis de colesterol”, explanou Dias.
Nesse sentido, Plavnik defendeu a atuação, na atenção primária, da equipe multidisciplinar, tanto na pré quanto na pós-consulta, para informar, ouvir e incentivar o usuário a aderir ao tratamento. Patrícia de Luca, diretora executiva da Associação Brasileira de Hipercolesterolemia Familiar (AHF) e membro da Comissão Organizadora do FórumDCNTs, afirmou que, muitas vezes, a pessoa com doença crônica diz ao médico que está tomando o medicamento, embora não seja verdade, para evitar uma bronca. “É na conversa com a equipe de saúde da família que ela realmente se abre e expõe dúvidas e dificuldades. O nutricionista, psicólogo, enfermeiro, educador físico, agente comunitário de saúde são profissionais que vão acolher e fazer o usuário se sentir cuidado, o que o leva a se cuidar também”, constatou. “A equipe multiprofissional é crucial para o autocuidado apoiado”, concordou Dias, ressaltando que o suporte às mudanças de estilo de vida não deve seguir a mesma receita, mas sim considerar os diferentes contextos e suas necessidades, bem como a estratificação de risco. “A estratégia de saúde da família é indispensável para alertar e transmitir conhecimentos àqueles que integram o grupo de risco de pessoas acima de 40 anos com pressão alta, diabetes e obesidade. Muitas delas não entendem a gravidade da doença, sequer sabem o que é hemodiálise”, observou Maria de Lourdes da Silva Alves, da Federação Nacional das Associações de Pacientes Renais e Transplantados do Brasil (FENAPAR).
Iniciativas relevantes para diagnóstico e controle de fatores de risco na atenção primária
Os integrantes do evento abordaram a necessidade de se identificar no país ações efetivas de prevenção, diagnóstico e tratamento para que possam ser replicadas. Uma delas foi apresentada pela Dra. Frida Plavnik - o programa “Cuidando de Todos”, instituído em 2018 pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo em seis Unidades Básicas de Saúde, com o apoio da Novartis Foundation. A iniciativa expandiu-se e, em 2022, estava presente em 232 UBSs e havia impactado mais de 3,5 milhões de pessoas. “Criamos um protocolo baseado na Diretriz Brasileira de Hipertensão com o objetivo de otimizar a avaliação de pessoas com essa condição, padronizando a medição da pressão arterial. Até o momento, fizemos cerca de 50 capacitações para 2721 profissionais de saúde e gestores. Registramos aumento de 17% na proporção de pessoas com hipertensão controlada, e de 20% para 23% de diagnosticadas/tratadas. O número de usuários rastreados subiu de 45% para 81%”, relatou Plavnik.
A nefrologista também explicou a importância para a atenção primária dos pacotes técnicos HEARTS e HEARTS-D da Organização Mundial de Saúde (OMS), voltados para a redução da morbimortalidade por doenças cardiovasculares. “Trata-se de simplificações das estratégias terapêuticas para hipertensão e diabetes, uma espécie de ‘siga a seta’ que orienta como abordar, tratar e quando encaminhar para a atenção especializada as pessoas com essas condições. São pacotes que fortalecem a abordagem multidisciplinar”, esclareceu. Plavnik salientou que esses guias oferecem calculadoras de risco cardiovascular e de doença renal crônica.
A partir dos tópicos debatidos, os especialistas delinearam os principais desafios para o enfrentamento da doença renal crônica: fortalecimento da atenção primária; redução das desigualdades no acesso aos serviços de saúde; melhoria na gestão e educação permanente para implementação de protocolos e organização da linha de cuidado; financiamento público; e valorização das equipes multiprofissionais.