Em evento promovido pelo FórumDCNTs, especialistas discutiram estratégias para prevenção da insuficiência cardíaca, eficiência do atendimento no SUS e redução de hospitalizações e óbitos
As doenças cardiovasculares (DCV) estão entre as principais causas de morte da população mundial. Dentre elas, a mais prevalente é a insuficiência cardíaca (IC), que atinge aproximadamente 23 milhões de pessoas no mundo. A condição é considerada, atualmente, uma epidemia. Países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre eles o Brasil, têm registrado crescimento gradativo de sua prevalência. Um dos motivos é o aumento da expectativa de vida, na medida em que a IC é encontrada, principalmente, em faixas etárias avançadas (Confira todos os vídeos do evento aqui).
Essa doença crônica é um problema de saúde pública que impacta os países de maneira global, devido às altas taxas de incidência, mortalidade e hospitalização; diminuição da qualidade de vida das pessoas afetadas e de suas famílias; e repercussão negativa na economia.
Entre os desafios relacionados à IC no Brasil, estão: deficiências na prevenção primária, ou seja, dos fatores de risco de alterações cardíacas (obesidade, diabetes, dislipidemias, hipertensão arterial, sedentarismo, tabagismo, entre outros); dificuldades enfrentadas pelas pessoas com a condição para acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e também em sua jornada dentro dele, nos diferentes níveis de atenção; falta de adesão ao tratamento; baixa familiaridade, pelos profissionais da atenção básica, com os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para IC. Há, ainda, as repercussões tanto na renda individual e familiar quanto na produtividade do país, além do ônus econômico nos sistemas de saúde e de seguridade social.
Estas questões foram levantadas pelos painelistas do evento “Insuficiência Cardíaca e Doenças Cardiovasculares: Ações Necessárias para Prevenir e Tratar”, promovido pelo Fórum Intersetorial para Combate às Doenças Crônicas não Transmissíveis no Brasil (FórumDCNTs) no dia 28 de julho. “Reunimos profissionais de diferentes áreas do conhecimento e com experiências diversas para, juntos, entendermos o cenário da insuficiência cardíaca no nosso país, seus pontos fortes, necessidades de aprimoramento e lacunas, bem como seus efeitos diretos e indiretos na população. Esses especialistas apresentaram estratégias para superar os desafios identificados, bem como iniciativas já consolidadas nesse sentido”, explicou Dr. Mark Barone, coordenador geral do FórumDCNTs. “No debate, os convidados ressaltaram que ações efetivas para prevenir e tratar a insuficiência cardíaca envolvem a multidisciplinaridade e a articulação entre as esferas pública e privada e o terceiro setor”, destacou.
Impactos sociais e econômicos da insuficiência cardíaca no Brasil
Principal causa de hospitalização no SUS, a IC foi responsável por um terço das internações por doenças cardiovasculares entre 2008 e 2018. Foram mais de 2,8 milhões de hospitalizações no período. “À medida que as internações se tornam frequentes, a pessoa entra em estágios avançados e numa fase derradeira da doença. As hospitalizações custam a vida de pacientes”, alertou a Prof.ª Dr.ª Lídia Moura, diretora administrativa do Departamento de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
A maior parte de óbitos por IC acontece nos hospitais. A pesquisa BREATHE (Brazilian Registry of Heart Failure) revela taxa de 12,6% de mortalidade intra-hospitalar no Brasil, extremamente alta em relação àquelas de outros países, que estão em torno de 5%, de acordo com estudos internacionais. A taxa de reinternação também é elevada – em um período de até 90 dias após a alta, cerca de 50% das pessoas voltam a ser hospitalizadas.
As hospitalizações e falta de tratamento adequado não têm impacto financeiro somente nos sistemas de saúde. Pesquisadores da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), em parceria com o laboratório farmacêutico Boehringer Ingelheim Brasil, conduziram um estudo que estima e correlaciona os dados socioepidemiológicos e os custos de saúde e previdenciários da IC no país entre 2018 e 2021. No período, foi de mais de R$ 18 bilhões o impacto financeiro decorrente da reposição da mão de obra por conta de afastamentos causados pela IC. Já a perda de produtividade em território nacional (em termos de serviços e bens produzidos), ultrapassou R$ 28 bilhões. “O Brasil todo paga o preço pela falta de acolhimento, tratamento e acompanhamento da pessoa com IC. Temos que compreender que os gastos com prevenção e promoção da saúde são investimentos que beneficiam a economia, pois refletem em produtividade”, asseverou Leon Nascimento, coautor do trabalho científico e representante da FIRJAN.
Uma das maneiras de investir na saúde pública é incentivar a pesquisa e inovação na esfera do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Em abril deste ano, o Ministério da Saúde anunciou ações que visam expandir a produção nacional de medicamentos, equipamentos, vacinas e outros insumos médico-hospitalares. “A fabricação pelo Brasil desses produtos permite a redução das vulnerabilidades do SUS em relação ao mercado internacional e promove sua sustentabilidade”, afirmou a Dr.ª Elaine Goulart, médica da Farmanguinhos da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).
Como melhorar as abordagens farmacológica e multidisciplinar
Durante as internações, são baixas as taxas de prescrições de terapias baseadas em evidências. “O SUS disponibiliza medicamentos que atendem as diretrizes brasileiras para tratamento da IC, as quais são extremamente atualizadas. No entanto, verificamos que elas não são transpostas para a prática médica, pois há pouca utilização das novas drogas”, lamentou a cardiologista. Na opinião de Elton Chaves, assessor técnico do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), a baixa adesão aos protocolos clínicos e condutas terapêuticas é reflexo do conhecimento deficitário acerca desses instrumentos pelos médicos e equipes multiprofissionais. Ele ressaltou a relevância do fortalecimento da farmacoterapia padrão para que as incorporações tecnológicas recentes, de alto custo e com indicações específicas, sejam bem utilizadas.
“Temos um amplo arsenal terapêutico no SUS, o que nos permite trabalhar as diferentes classes medicamentosas conforme a necessidade”, lembrou o Prof. Dr. Luiz Bortolotto, diretor da Unidade Clínica de Hipertensão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (InCor – HCFMUSP) e representante da Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH). O médico sustentou que a melhor estratégia para tratar a IC é começar o mais cedo possível. “Os estágios da insuficiência cardíaca são bem definidos, classificados por letras, de A até D, conforme o comprometimento do coração. As fases A e B são as melhores para o início da abordagem farmacológica e da atuação da equipe multidisciplinar, voltada para a mudança nos hábitos de vida, como alimentação saudável. Devemos evitar que a pessoa atinja a etapa D, equivalente à insuficiência cardíaca refratária, a qual requer intervenções em hospitais terciários para procedimentos como transplantes ou uso de corações artificiais de alta tecnologia”. Bortolotto ressaltou que o foco do tratamento devem ser os fatores de risco e morbidades relacionados à IC. “A maioria das pessoas da fila para transplante cardíaco não precisaria estar nessa situação. São indivíduos com hipertensão, diabetes, doenças isquêmicas, valvopatias, obesidade, dislipidemias, condições
passíveis de intervenções, farmacológicas e não farmacológicas, precoces ou preventivas”, explicou.
Propostas para facilitar a jornada do usuário com insuficiência cardíaca no SUS
Na rede pública de saúde, o usuário tem dificuldade de acesso aos cardiologistas, que possuem agenda cheia devido à alta prevalência das doenças cardiovasculares. Para evitar a piora do quadro clínico da pessoa com IC, a Prof.ª Dr.ª Lídia Moura defende que o diagnóstico e a prescrição medicamentosa sejam realizados na atenção primária. “Com um treinamento simples, o médico de saúde da família pode identificar a insuficiência cardíaca e iniciar o tratamento. Concomitantemente, a equipe multiprofissional deve trabalhar com orientação alimentar, controle de balanço hídrico e ações educativas. Essas medidas irão proporcionar qualidade de vida ao usuário, prevenção de hospitalizações e redução da mortalidade. Posteriormente, o cardiologista, ao atender esse indivíduo, fará mais exames e, se necessário, adequará o tratamento”, recomendou.
As sugestões de Moura integraram o debate sobre como facilitar o acesso e tornar mais efetiva a jornada do usuário com IC pelos níveis de atenção do SUS. “Mais da metade das pessoas que nos procuram mencionam dificuldade em iniciar o tratamento”, afirmou a comunicadora Flávia Lima, presidente da Associação Brasileira de Apoio à Família com Hipertensão Pulmonar e Doenças Correlatas (ABRAF). “Após o diagnóstico, elas entram numa espécie de limbo: não conseguem a consulta com o cardiologista e nem retornar à atenção primária. A maioria tem comorbidades e necessita de mais de um especialista. Quando são finalmente atendidas na atenção especializada, parte delas permanece com dúvidas após a consulta. Elas demoram a entender o que é insuficiência cardíaca e que ela é consequência de condições como hipertensão e diabetes”, relatou.
“A jornada do usuário do SUS ainda é muito sofrida”, concordou Moura. “Enquanto ele aguarda a consulta com o cardiologista, pode ser internado de forma emergencial devido a uma descompensação ou mesmo sofrer morte súbita domiciliar”. A solução indicada pela diretora da SBC é melhorar a comunicação entre os profissionais da rede de atenção à saúde (RAS) e o empoderar a atenção primária. “Temos dificuldade em ver com frequência as pessoas que atendemos. Quando eles são por nós encaminhados, na contrarreferência, à unidade básica de saúde, não podem ficar ‘soltos’, precisam de acompanhamento. A equipe multiprofissional pode desempenhar esse papel e nos auxiliar por meio de interconsultas”, propôs a cardiologista.
Conforme a Dr.ª Enilda Lara, coordenadora de projetos do Hospital do Coração (HCor) no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional (PROADI) do SUS, a equipe multiprofissional pode auxiliar os gestores no planejamento terapêutico e estabelecimento de fluxos. É o que acontece no projeto FortaleceRAS, parceria entre o HCor e o Ministério da Saúde, que oferece suporte à implementação das linhas de cuidado de Sobrepeso e Obesidade, Diabetes Mellitus tipo 2, Hipertensão Arterial Sistêmica, Acidente Vascular Cerebral e Infarto Agudo do Miocárdio, em duas regiões de saúde do país. “Orientamos o indivíduo em seu percurso assistencial, para que ele não fique perdido e lhe seja garantida a integralidade do cuidado. Com tratamentos não farmacológicos, investimos na promoção de hábitos saudáveis e estimulamos o diálogo entre os diferentes níveis de atenção”, esclareceu a nutricionista.
“Estruturar a rede e implementar as linhas de cuidado são os nossos principais desafios”, avaliou Elton Chaves. O farmacêutico reforçou a necessidade de integração entre os serviços de saúde, consolidação do cuidado longitudinal e controle dos fatores de risco comportamentais e metabólicos. “É importante fortificar a gestão clínica do cuidado pela atenção básica, preparando os profissionais para que adquiram capacidade terapêutica e resolutiva. Com esse objetivo, oferecemos teleducação continuada em serviço nas Unidades Básicas de Saúde por meio do portal e TV Mais CONASEMS. Também incentivamos a equipe multiprofissional a participar dessa coordenação, inclusive com busca ativa de fatores de risco entre a população”, explanou. A iniciativa foi elogiada por Paulo Fascina, responsável pela área de Ecossistemas em Saúde da farmacêutica Boehringer Ingelheim Brasil. “Levar capacitação e formação qualificada à atenção primária dos quase 5.600 municípios brasileiros permite que os fármacos disponibilizados pelo SUS sejam utilizados com efetividade”, comentou.
O protagonismo da pessoa com insuficiência cardíaca deve ser incentivado
Chaves frisou a relevância da participação ativa da pessoa com IC em seu próprio tratamento. “O usuário deve ser preparado para melhorar sua capacidade de autocuidado, tornando-se corresponsável pela sua saúde; caso contrário, os demais esforços serão em vão”. Nesse sentido, Bortolotto considera que a melhor estratégia para garantir a adesão à terapêutica e impedir a progressão da doença é a educação do indivíduo e de sua família.
Dados da pesquisa BREATHE manifestam a necessidade de melhoria da qualidade da atenção hospitalar. Foram computados baixos percentuais, no momento da alta, de orientações aos indivíduos. “A falta de adesão da pessoa com IC às recomendações médicas é a principal causa de hospitalização. Resta entender o contexto de cada usuário do sistema de saúde – se ele simplesmente não consegue seguir as orientações ou se determinadas condições não permitiram que ele compreendesse o tratamento”, ponderou Moura.
Leon sugeriu a inclusão da medicina de trabalho nesse contexto. “As equipes de saúde do trabalho das empresas deveriam trabalhar com a criação de comunidades para prevenção e apoio às pessoas com IC por meio da Telemedicina”, propôs. De acordo com Patricia de Luca, cofundadora do FórumDCNTs e diretora executiva da Associação Brasileira de Hipercolesterolemia Familiar (AHF), é essencial que a pessoa com IC tenha condições de atuar de maneira proativa na defesa de seus direitos. “O FórumDCNTs vem trabalhando para que essas pessoas tenham poder de voz e de decisão na definição de políticas públicas”.
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